Por mais paradoxal que possa parecer, quando nascemos, somos inteiros. Uma inteireza chamada pela psicanálise de ID, quando estamos plenos de nós mesmos, de nossos desejos e pulsões. Um bebê, por exemplo, quando quer chorar, ele simplesmente chora. Ele não avalia e questiona se, por exemplo, seriam o local e a hora adequados. Somente chora. O bebê tem desejos e, ao chorar, descobre que alguém surgirá ali para suprir cada uma de suas demandas. Uma criança pequena chega a uma biblioteca, daquelas onde não podemos fazer ruídos nem para respirar e, se tem vontade de correr, gritar e cantar, ela o fará. O ID busca pelo que lhe é prazeroso e ponto. O ID é aquele que tudo quer.
No decorrer de nosso crescimento, no entanto, acontece um processo inevitável e até certo ponto, útil. É o momento da castração (como diria Freud) ou do nosso encontro com o Sistema de Crenças, o chamado Livro da Lei pelo povo tolteca, nos dizeres de Don Miguel Ruiz, no livro Os Quatro Compromissos (2017).
Esse “Livro da Lei” ou Sistema de Crenças (ou ainda SUPEREGO, segundo a psicanálise) é composto por todas as regras, normas, crenças, conceitos e afins, que nos são transmitidos por nossa família, pela escola, pela religião, pela mídia, pela cultura e pela sociedade como um todo.
Acontece mais ou menos assim: a criança está plena, inteira, livre e feliz correndo e gritando pela igreja (obedecendo aos impulsos do seu ID), até que diversas pessoas começam a encará-la com olhar de irritação ou de reprovação. Muitas delas provavelmente estão pensando: “aqui não é lugar disso.” Ou ainda: “onde está a mãe desta criança?”. Eis que surge então o adulto responsável pelo ser humaninho e diz: “Filho, assente-se e se comporte como um rapazinho. Aqui não é lugar disso”. E, desse modo, a criança vai
entrando no Sistema de Crenças, escrevendo em sua mente o “Livro da Lei” dos toltecas. Ela vai se apropriando de uma moral que vem de fora, não mais de seus desejos. O SUPEREGO é aquele que nada pode.
Lá atrás eu disse que isso, até certo ponto, é útil. E de fato é, veja só! Uma criança precisa aprender as regras do coletivo e não fazer somente o que o ID deseja, pois isso pode inclusive significar riscos para sua integridade física (deixe sua criança livre para enfiar uma tesourinha na tomada e verá!).
Entretanto, dependendo do modo como isso é feito, há partes nossas que vão ficando para trás (civilização é repressão, já diria Freud). É mais ou menos como se fôssemos um quebra-cabeças, cujas peças vão ficando pelo caminho, fazendo com que percamos a nossa inteireza de quando éramos apenas bolinhos de carne, crianças bem pequenas. Como eu já ouvi a psicóloga e educadora emocional Flávia Melissa (2017) dizer, dando o exemplo do conto clássico de João e Maria, quando as crianças vão deixando migalhinhas de pão pelo caminho, numa analogia às nossas partes esquecidas, deixadas à margem de nossa história, numa tentativa de nos enquadrarmos ao Superego.
E como isso ocorre? Quando alguém diz: “engole o choro, menino, que homem não chora”, a sua parte triste fica para trás. Quando alguém diz: “tá com raivinha? Pode parar com essa bobagem!”, a sua parte que sente raiva e que está brava fica para trás. E assim por diante, com todas as emoções julgadas como “erradas” ou “feias” pelo sistema de crenças no qual estamos inseridos…
Então você me pergunta: “Ué, Roberta, isso não é bom? Deixar tristeza, raiva e otras cositas desse tipo para trás?” E eu te digo, com a segurança de quem viveu isso: não! Não é! Porque essas partes são suas. Elas também compõem quem você é. E chegará o dia em que você precisará, como no conto de fadas, fazer o caminho de volta, buscando os pedacinhos de você mesmo que foram abandonados na estrada, para encontrar a sua inteireza perdida.
O universo é dual e todos nós também somos. Na tridimensionalidade, convivemos sempre com os pares de opostos, é natural. Às vezes o que parece mau, incorreto, inadequado, faz parte de sua completude e de quem você é. E-s-t-á t-u-d-o b-e-m! E a transformação que você espera só vai acontecer quando você olhar isso de frente! Quando você se aceitar! Quando você integrar suas sombras em seu coração (onde sempre há espaço para acolhimento)!
Mas, atenção! Não se trata de nos acomodarmos diante de nossas características das quais não gostamos, que às vezes fazem mal aos outros ou, especialmente, a nós mesmos. Estamos falando de acolher nossa sombra (essa porção nossa que foi convocada a se enterrar nos porões de nossa intimidade), para, assim, jorrar luz sobre ela. Só o que é olhado pode ser integrado e transformado. Sempre em busca da nossa inteireza esquecida, na ânsia de sermos amados, aprovados e de pertencermos
*Mestre em Psicologia do Desenvolvimento e da Educação, Pós-graduada em Psicanálise, Constelação Familiar e Neurociências, Palestrante, Professora, Psicanalista, Consteladora Familiar, Terapeuta Holística e Criadora do canal do YouTube Roberta Melo Terapias.
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